16/04/2009

POLÍTICA CULTURAL – Quem tem medo deste bicho? – Segunda Parte

Por Fausto Fuser

À pergunta-título, cabe resposta única: trata-se de uma característica dos políticos brasileiros. Isto é: de todos eles! Os muitos milhares de compatriotas que se dedicam àquela ocupação, abstendo-me de qualquer insinuação de caráter valorativo sobre a referida profissão (mais antiga até que uma certa outra, sempre injustamente mencionada) tem sim, medo-pavor de Política Cultural. Os políticos brasileiros tem medo-pavor até de tocar no assunto Política Cultural, sim senhores! Sim, sim, requesim!
Ao abraçar a profissão de político, as pessoas com o RG verde-amarelo sofrem uma espécie de vasectomia cerebral que os impedirá de sequer pensar que possa existir uma coisa chamada “política cultural”. Esta é uma palavra maldita, jamais pronunciada pela espécie nacional dos políticos.
O mais alto vôo “político cultural” a que se chega vez por outra nestas plagas, e nessas ocasiões os partidários e chefes e chefetes-de-torcida soltam foguetes e rojões coloridos, são as do arroz-com-feijão. Sobre elas escrevem-se reportagens, loas e poemas! Como são aplaudidos e exaltados, os políticos da tal “cultura prête-à-porter” porque mandaram contratar (e que contratos!...) sem nenhuma continuidade, bandas e artistas populares muito apreciados para algumas apresentações públicas festivas; porque auxiliam parcialmente as escolas de samba para o carnaval; porque pingam (a cada morte de papa) alguns tostões para algumas atividades teatrais, de dança, de ópera, três ou quatro financiamentos perversos e parciais de filmes, raríssimas exposições de artes plásticas, apresentações de música erudita e menos ainda as folclóricas e regionais não massificadas e mini-pingos para pesquisas das manifestações artísticas junto à comunidades indígenas e quilombolas, reformas em alguns poucos monumentos arquitetônicos históricos (sempre abandonados), reformas de dois painéis de pintura mural em estado de misericórdia e por aí se vai morro abaixo... no descaso, na ignorância, no medo-pânico de um compromisso real com a tal Política Cultural!
Mas essa “obra cultural” que devidamente somada e pesada com as demais iniciativas oficiais é de uma miséria lastimável... deverá ser festejada e colorida e estar despudoradamente a serviço da primeira eleição à vista. Quando esta terminar, independentemente do resultado, ela termina também. Fim da breve, estéril e abortada história... “cultural” no pedaço.
Essa é a “cultura” na política brasileira. É exatamente assim que ela é tratada, do Arroio ao Chuí.
Chegamos a tal mediocridade corrente que o fato é tomado como natural e ninguém mais fala em “Política Cultural”. Fala-se apenas na “Lei Rouanet”. Quando esta é uma lei implantada justamente para não se falar mais em Política Cultural.!!! Para dar este maldito assunto de “política cultural” por encerrado!!! Senhor Rouanet, seja lá quem for, o senhor é um homem de total sucesso, embora malévolo!
Essa lei é um vasto, intrincado e perverso rol de burocracias para oferecer no final, quando tudo eventualmente deu certo, uma parte do financiamento para UMA obra, para UMA iniciativa de caráter cultural ou artística. Não apresenta, nem no seu preâmbulo, princípios político-culturais. Não é absolutamente disso que a Lei trata: ela fica só no financiamento, não no pensamento de uma filosofia de construção de uma nação.
E a “Lei Rouanet” veio calando com sucesso todas as bocas até ontem, quando resolveram dar uma rasteira nos grupos dedicados (com quais sacrifícios!) à produção artística e cultural no país. Um golpinho sujo a mais que se aprovado (já é dado como tal, ora pois...), vai abaixar ainda mais as perspectivas da classe artística e produtora de arte e cultura no Brasil!
Diante da perspectiva inevitável de protestos e reclamações (inconvenientes todas, pois já estamos em pleno período de campanha eleitoral), inventaram até uma demagógica figura nova de poder entre nós: são uns tais “grupos de consulta popular” (lembrança do chavão “todo o poder vem diretamente do povo”?). Ninguém vai me convencer que acredita nesse Papai Noel, não é? Isso é brincadeira, trapaça de jogo de pôquer em filme de caubói. Cartas marcadas perto disso são hóstias de missa dominicana.
Não vou me estender comentando a “Lei Rouanet” e muito menos o golpinho sujo na sacrificada classe produtora das artes e da cultura. Ela não substitui a Política Cultural. Quem estiver interessado nos patrocínios daquela lei pode buscar consulta competente via internet, e adianto alguns contatos indispensáveis: a Cooperativa Paulista de Teatro, o grupo de teatro Companhia do Feijão, o grupo de teatro de rua Arruar, a Associação Paulista de Cineastas, a Associação Paulista dos Produtores Independentes de Teatro (estas todas de S.Paulo, citadas de memória do momento por suas lutas de sempre, mas haverá muitas outras consultas esclarecidas e combativas pelo país, certamente!). E há escritórios, pessoas especializadas e firmas estabelecidas, competentes, na busca correta de obtenção dos patrocínios e atendimento das suas numerosas e intrincadas exigências, procedimentos e documentação complexa. E agora, com uma novidade: a Lei Rouanet vai selecionar também segundo a “qualidade” e a “oportunidade” (para quem?!!!) dos temas propostos... E toma outra vez a presença do Estado na criação artística... para dizer o mínimo. Conclua o leitor livremente...
O professor Mauro Chaves, comentarista de O Estado de São Paulo, em apropriado artigo, tratou da Lei Rouanet na página dois daquele jornal que ainda, no dia seguinte, publicou editorial de enorme interesse sobre o assunto, tratando das prováveis restrições à liberdade de criação que advirão da “singela” modificação proposta. O jornal A Folha de São Paulo, além de editorial, reproduz algumas palavras sem qualquer sentido inteligente e pouco brilhantes do ministro da Cultura, que em entrevista sobre o tema no qual, sobretudo pela ocasião, ele tinha a obrigação de ser cristalino como Madre Tereza de Calcutá, não declarou coisa alguma com a sua oratória fugidia, patife, medíocre e opaca...
Quando Adolfo Hitler invadiu a Polônia, em 1939, com seu exército de homens “superiores”, sua primeira ordem foi mandar seus oficiais livrar a nação triunfante da “inteligência” polonesa: seus professores, seus artistas, seus atores, suas atrizes, seus escritores, seus músicos; seus escultores, cineastas, arquitetos, compositores, cantores, pintores, médicos, engenheiros, arquitetos, bailarinas, bailarinos, diretores, cenógrafos, pintores, fotógrafos, poetas, restauradores, historiadores, cientistas, criadores originais de todas as áreas do conhecimento. Foi uma feroz caçada à inteligência humana no país jurado de morte pelo comandante nazista. Porque não bastava “riscar a Polônia do mapa” (sic), como havia jurado o senhor Hitler em sua obra “Minha Luta”. Varsóvia era apenas uma cidade. Foi arrasada, mas não morreu. Havia que aniquilar a vida polonesa... o que era muito mais que só dinamitar a bela Capital,o que foi feito diligentemente... Dando ocasião para uma reconstrução emocionante!!!
Para aniquilar a Polônia era imperioso aniquilar... a cultura polonesa! As duas coisas se fundem, desde a mais remota história nacional da pátria de Chopin. E isso comprovou-se, apesar do poderio militar alemão, ser tarefa mais uma vez impossível.
Depois das ações militares de invasão, a ocupação nazista se iniciou com as ações de destruição da cultura polonesa. E os primeiros passos foram a destruição do teatro e do cinema poloneses!
Os alemães tinham engasgados na garganta, desde o início do século passado, os fantásticos sucessos do teatro renovado polonês, irmão dos caminhos trilhados pela renovação e vanguardas na França, Itália e pelo teatro de massas dos palcos esteticamente revolucionários soviéticos das primeiras décadas. No cinema principalmente durante todo o período do cinema mudo, a Polônia produziu filmes que chegaram a fazer parte da implantação da sétima arte em toda a Europa e principalmente nos Estados Unidos, quando teve como parceiros de relevo, os cinemas inglês e sueco.
Sob o teatro e o cinema poloneses, havia uma vasta rede sindical organizada do profissionalismo artístico, bem como do ensino e de oferta das artes para atender à intensa demanda de fruição para um enorme e entusiasta público. A música erudita polonesa, tanto tradicional, clássica, como “moderna”, suas artes visuais e seus museus e monumentos históricos sempre foram visitados e conhecidos desde as classes do ensino básico, às crianças por todo o país.
Invadida seguidas vezes, a Polônia havia aprendido que sua grande força não estava nas armas, mas na cultura de seus habitantes, a mola mestra de seu orgulho nacional. Na cultura e nas artes repousava a unidade nacional!
O que fizeram os civilizados soldados alemães? Fecharam todas as companhias teatrais existentes, patrocinando apenas um teatro que conhecemos como “chanchada”, de comédia chula, pornográfica, para a sua própria soldadesca, onde os cidadãos e as mulheres poloneses eram apresentados de forma ofensiva e irreal. De maneira ainda mais perversa, porque mais sutil, fizeram o mesmo com o cinema polonês já em fase da sonorização.
Na verdade, os estúdios cinematográficos rodaram seus filmes até o último dia de liberdade. O mesmo aconteceu com os teatros. Para nós, brasileiros, há um detalhe interessante: Ziembinski, o grande ator e diretor do nosso teatro renovado, teve interrompida sua carreira no teatro polonês quando uma bomba cortou a carreira da peça que havia dirigido com sucesso, até a véspera da invasão nazista (coincidentemente a peça era de Bernard Shaw e satirizava os nazistas e o líder fascista Mussolini). Não muito distante daquele local, outro teatro era inaugurado na mesma data infeliz: era o Teatro Judeu de Arte de Varsóvia, uma célebre companhia ambulante de teatro judeu, dirigido por Zygmunt Turkow, onde também atuava como diretor. Turkow havia se tornado célebre pela encenação do “Dibuk”, um clássico do teatro em língua iidiche, com o qual percorreu toda a Europa do Leste, vindo até o México e Argentina, com sua companhia. A estréia de seu teatro era a realização dos sonhos de toda uma triunfante mas sofrida carreira artística. O teatro, enorme, fora totalmente reformado e equipado com grandes sacrifícios pessoais e familiares. Turkow acabava de se casar com sua jovem e formosa atriz Roza. Tudo era sorrisos, até cair uma bomba no meio do palco, minutos antes do espetáculo começar, na estréia que não houve.
Seguindo os apelos do presidente da Polônia às vésperas da invasão, Ziembinski iniciou sua saída do país passando pelas fronteiras do sul, atravessando a Romênia, onde dirigiu teatro para tropas no exílio, passando por parte da Itália, voltando pelo sul da França ainda livre; em Paris tornou a dirigir teatro para as tropas polonesas no exílio, e depois de súplicas e andanças atropeladas, Ziembinski consegue um passaporte para o Brasil, quase por milagre, e novamente vai ao sul da França e consegue uma passagem num cargueiro mais parecido com um navio-fantasma. Seis meses depois, o Rio de Janeiro e seu primeiro cafezinho num balcão de botequim! Integrou-se à nossa vida de imediato!
Turkow tentou durante vários meses obter uma carta-convite e garantia de trabalho na Argentina, na impressora de um irmão. Os trâmites foram penosos e arrastados. A Gestapo já estava caçando judeus em Varsóvia, onde se mantinham abrigados precariamente. O casal conseguiu escapar dos nazistas depois de peripécias dignas de filmagens. Em Buenos Aires constituíram uma pequena trupe itinerante de teatro judeu, em iídiche. Foram a Porto Alegre, onde a colônia judaica era significativa. De lá, em navio costeiro (não havia outro meio de transporte), foram a Pernambuco, outro centro judaico importante no Brasil. E lá eles ficaram, retidos durante três longos anos, graças à ação permanente dos submarinos alemães nas costas brasileiras e seus torpedeamentos. Outros dissabores (talvez mais dolorosos ainda) esperavam pelo casal, que emigrou assim que teve condições para a nascente Israel que prometia uma vida nova, depois dos sofrimentos impostos pelos nazistas aos judeus em toda a Europa.
Turkow, que as indicações históricas e documentais apontavam como um ator e diretor ainda mais criativo que Ziembinski, não assinalou a sua importância pessoal ou artística nem no teatro, nem no cinema que se criava naquele momento em São Paulo e no Rio de Janeiro, apesar de seu brilhante e comprovado currículo profissional nas duas artes, em Varsóvia, em longos anos de profissionalismo. O Brasil o ignorou, ou Turkow não soube encontrar entre nós os caminhos da integração, ou aproximação. Fatos tão raros quanto intrigantes entre nós, que sabemos receber os estrangeiros de braços e coração abertos, sem distinções.
Ziembinski e Turkow não foram os únicos, mas certamente foram os artistas poloneses mais importantes que a invasão alemã nos enviou de uma forma ou de outra, da culturalmente rica e instigante Polônia. Qualquer depoimento, qualquer rápida pesquisa das declarações desses dois artistas, de seus currículos, de suas vidas poderá comprovar o trânsito intenso, rico, variado e mesclado às suas próprias existências com os fatores culturais e artísticos de seu país natal: - Polônia, uma nação que sabe transformar sua cultura e suas artes em sua mais resistente força cívica e de indissolúvel identidade!
Varsóvia, hoje inteiramente reconstruída, é ainda mais formosa que em 1939. Seu povo, hoje inteiramente livre de ocupações estrangeiras, retomou há tempo sua organização sindical artística, e voltou a dedicar atenção e carinho para com suas entidades de geração de ensino e criação artística. E retomou plenamente, na inteira possibilidade de seus recursos, sua atenção para com a Política Cultural com o zelo e orgulho de sempre. Os políticos poloneses sabem que devem respeitar os recursos destinados no orçamento da nação, das regiões e dos municípios, para a Política Cultural do país.
Mas a Polônia não é o único país do mundo com vasta e experimentada Política Cultural. A França, a Suíça, a Itália, a Inglaterra, a Bélgica, a Holanda, todos os países escandinavos podem sugerir aos governantes brasileiros maneiras diferentes de bem servir a nação com uma Política Cultural adequada às condições complexas do nosso vasto território, de suas diversas condições sociais, geográficas, econômicas, atendendo ainda às diferentes manifestações com distâncias enormes entre si. Nosso território, enorme, também apresenta problemas muito especiais e vastos. Todos aqueles paises supracitados cabem com folga, em nossas fronteiras. É por isso, também, que aqui não deveriam existir políticos tão pequenos. Nem suas politiquinhas de arraial, que ignoram a Cultura como fator indispensável de vida e de cidadania.

(segue)

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