10/03/2009

Provocadores - Postagem Inaugural

Todos estamos acostumados a encontrar obstáculos – tantas vezes colocados com propósitos que desconhecemos – em nossas atividades, em nossos trabalhos, em todos os setores de nossas vidas, enfim. Estes nós reconhecemos prontamente e prontamente contra eles nos pomos a lamentar.

De forma que pouco tempo nos sobra para agradecer aos nossos anjos, quando alguém – ao contrário do que estamos acostumados – se coloca ao nosso lado para nos ajudar a removê-los (os tais obstáculos). Principalmente quando este alguém – muito acima de nós nas esferas cotidianas - o faz desinteressadamente, do alto de seu cabedal de conhecimentos e tendo que empregar para tanto de esforço pessoal e – sobretudo – de muita generosidade. Quando alguém não hesita em colocar seu prestígio, meritoriamente conquistado, em benefício de alguma coisa que nós – também com bastante esforço – estamos trabalhando seriamente para realizar, atravessando, a despeito disso, dificuldades que nos parecem intransponíveis, e que por pouco não acabam por nos afastar daquilo que com tanto esforço objetivávamos concretizar. Quando alguém corre o risco conosco, embora julgássemos que tudo estava perdido.

Comigo também aconteceu assim, há alguns anos, quando lutava para levar a cabo o espetáculo que eu escolhera como meu projeto de formatura no curso de Bacharelado em Direção Teatral concluído na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo.

O texto que se segue é de uma destas pessoas – abençoadas – que surgiram em meu caminho. De meu orientador naquele espetáculo de formatura: “Leonor de Mendonça”, de Gonçalves Dias.

Estou feliz, honrada, e mais uma vez enormemente grata – por ter a oportunidade de declarar meu agradecimento a este mestre, que se assina simplesmente Fausto Fuser, mantendo ocultos todos os seus títulos acadêmicos (talvez porque não caibam numas poucas linhas!?). Ou talvez porque ele simplesmente já tenha ultrapassado o estágio de quem precisa destas apresentações.

Agradeço em meu nome, em nome de todos os alunos e alunas aos quais o senhor deve ter feito o mesmo que fez por mim, Professor Fausto Fuser, e ainda em nome de todos os Amotinados pelo prazer e a honra de ter um texto seu inaugurando a Coluna Provocadores de nosso Blog.

Sou-lhe grata mais uma vez, Professor Fausto, e desta vez ainda mais por ter a possibilidade de fazê-lo com muito respeito publicamente e, especialmente por indiretamente servir de canal para que outros possam também absorver seus vastíssimos conhecimentos teatrais e sua generosidade humana.

Agradeço-lhe em nome de todos nós!
Ao texto, então!

Orleyd Faya
Diretora do Núcleo MOTIN


POLÍTICA CULTURAL – Quem tem medo deste bicho? – Primeira Parte
Por Fausto Fuser

Quando alguém se propõe a falar de “política agrária” num país de latifúndios de extensões pornográficas e muitíssimo suspeitas, todos os interessados e/ou envolvidos direta ou indiretamente sabem do que se vai tratar, quer do lado dos proprietários, quer do lado dos que sonham ou necessitam de uma distribuição mais humana, equilibrada e racional das terras, quando não se trata até mesmo da preservação da própria soberania nacional.
Mas quando alguém abre a boca para falar de “política cultural”, pode-se aguardar qualquer coisa, posto que o assunto entre nós é absolutamente imprevisível. O orador tem liberdade total para falar o que bem entender, ou o que quer que seja de seus interesses imediatos e pessoais, claros ou escusos ( fala-se destes, em geral). Porque a diferença?

Porque a questão agrária está “perto de nossas vidas” mesmo que sejamos urbanóides de carteirinha, dirão os apressados. Mas sem que ninguém se dê conta, as ações (ou inações) ligadas à “política cultural” estão na verdade bem mais perto de nossas vidas que a questão agrária, ou industrial, ou pesqueira ou petrolífera. E no final das contas é ela, a cultura e a sua aplicação sob a forma política que vai determinar todas as outras! .

Cultura, para muitos, é a proposta abstrata que alimenta alguns curiosos suplementos e cadernos de jornais e programas até interessantes de depoimentos e debates televisivos, alguns cursos universitários de pós-graduação na área teórica que rende algumas bolsas para alguns felizardos estudarem em Paris ou Bologna, e há ainda, sob o indicativo genérico da cultura, muitos empregos na administração federal, em Brasília, num grande escritório/cabide chamado Ministério da Cultura e sua vasta rede de ação em várias modalidades, todas na exaustiva e conhecida função do dolce far niente. Bom salário, ar-condicionado, apartamentos funcionais, regalias e mordomias e todos sentados nos fardos da carne seca e ditando regras bla-bla-blás à esquerda e à direita. E o futuro à frente, todo sorrisos. Êita, vidinha boa!

Há também uma infinidade de empulhações mais descaradas que são apresentadas de várias formas sob o rótulo de ações culturais , todas de efetivo proveito não declarado e nunca esclarecidos, assuntos mais pertinentes à Polícia Federal do que para os suplementos dos jornais que deixam esses monstrengos passar incólumes, não se sabe por quais interesses.

Sem falar ainda das centenas de Secretarias da Cultura nos estados e municípios com uma atuação muitas vezes cheias de evidente boa vontade, servindo-se de artistas, estudantes, professores e professoras, intelectuais e amadores vibrantes, sinceros, atuando por ninharias, mas que terminam em gestos que se sabe de antemão, vão cair no vazio, posto que não há fertilidade para eventuais boas semeaduras, porque não estão inseridas no todo da política cultural (porque inexistente) da nação. E sem esta consciência nacional, como um todo em mobilização unânime, muito dificilmente estas ações isoladas vão frutificar.


Se eu perguntar pelo nome do ministro da agricultura, vou ter uma resposta certa em proporção muito maior do que se perguntar pelos nomes do ministro da cultura e seu vice (tantas vezes em exercício). Isto porque um bom número de pessoas sabe que o responsável pelo ministério da agricultura é um grande fazendeiro/latifundiário, entende do assunto como poucos, fala e age como tal e representa muitos milhares de outros senhores de idêntico fazer e pensar e influencia diretamente nas ações e planejamentos de milhões de agricultores brasileiros.

E quem é o ministro da cultura e seu vice? Você já viu a cara desses caras? Sabe o que eles já fizeram? Que livros escreveram? Se professores, sabe-se que matérias lecionam, onde estudaram, quais os seus mestres, os seus pensamentos, as suas propostas, o que já fizeram na área? Você respeita e/ou admira suas posturas públicas quanto às manifestações e obras intelectuais e culturais do país, do passado e do presente? Alguém sabe o que eles querem e planejam para o futuro cultural do país? Eles são dignos da liderança da cultura nacional? Você acredita no que eles pregam? Desculpem-me: alguém já os ouviu fazendo alguma pregação, umazinha qualquer ou já leu alguma proposta ou tese deles, umazinha sequer? E atenção: uma montanha de dinheiro é repassada a certas abençoadas agências para fazerem a propaganda dessa gente toda!

Muitos detestam o nosso ministro da agricultura por quem ele é (e não esconde) e por tudo o que ele representa e já andou dizendo e fazendo, certo ou errado. Por tudo aquilo em que ele, sabe-se publicamente, acredita e busca tenazmente como objetivo da sua função ministerial e na liderança dos seus iguais. E sabe-se claramente tudo o que ele quer para o país, na agricultura.
Mas... e quanto aos responsáveis pela administração da política nacional da cultura? Dá para fazer as mesmas indagações, para o bem ou para o mal? Como ficamos? Alternativa correta: - Ficamos de chapéu na mão, como diziam os nossos avós.

Durante parte do período da nossa ditadura militar, estive num país europeu da “cortina de ferro”, em estudo. Naqueles tempos de Guerra Fria, os EUA estavam arrasando o Vietnam que se recusou a se curvar para o império. Tive então como colegas, muitos jovens do Vietnam, com os quais estabeleci contato de boa camaradagem, como todos os estudantes do mundo. Eles me perguntavam muito sobre o Brasil e eu fazia o mesmo sobre o país deles, naqueles dias sofrendo feroz invasão – ou melhor, tentativa de invasão pelo exército mais poderoso do mundo (com meio milhão de soldados fortemente armados, equipados e bem nutridos) que jogou em seu território (pequenino) mais bombas do que sobre a Alemanha durante toda a segunda guerra mundial. Isso destruiu, desnecessariamente, a totalidade da sua reserva de florestas naturais (não poderão valer-se de seus recursos florestais por cem anos, após aquela destruição cientificamente criminosa).

Sabe-se que a aventura militar dos Estados Unidos terminou no conhecido vexame, com diplomatas gringos e traidores nativos pendurados nos helicópteros na cobertura da embaixada ianque.


O que os serviços americanos de informação ignoraram, ou calaram, foi que a melhor arma dos vietnamitas foi a sua... cultura!!! Nem mais, nem menos!
Foi a soma dos seus conhecimentos milenares, a sabedoria dos seus tataravós zelosamente preservados e transmitidos para toda a população. Eles e seus filhos herdaram esse tesouro ao nascer, aprenderam a cantar ainda no berço, praticam os jogos que aprenderam a jogar desde meninos e meninas, apreciam os tecidos que sabem tecer artisticamente, em suas casas, desde sempre, os quadros que sabem desenhar, as histórias que sabem contar e cantar em qualquer escola do campo distante, das montanhas e das florestas, as comidas simples e as comidas requintadas que sabem cozinhar, os peixes que sabem pescar e preparar, no desejo comum de preservar o seu país e sua nacionalidade: - a maneira de velar, enterrar e honrar seus mortos, a maneira de celebrarem os casamentos, os partos, os cuidados com os bebês, com as crianças.
A vida do viver de todos os dias, de todas as pessoas ao longo de quatro mil anos, segundo as afirmações dos meus jovens colegas vietnamitas; sedimentou fortemente uma identidade nacional que venceu, seguidamente, diferentes bárbaros do norte e do oeste, piratas ferozes, chineses de várias etnias, japoneses, franceses e por fim a fortaleza assustadora dos Estados Unidos da América, com seus milhares de aviões, tanques, armas químicas e meio milhão de soldados bem remunerados e melhor armados.

Os vietnamitas lutaram com lanças de bambu, com armadilhas e túneis feitos à mão durante a noite, comendo, às vezes, pequenas cuias de arroz com um pouco de banha de porco. Quando tudo corria bem, incluíam um pouco de couro de porco no tal arroz e isso já era uma festa! Mesmo durante a luta, eles estudavam e liam em livros de papel (mal) reciclado, mal impressos e encadernados lastimavelmente... mas estudavam e liam! Os livros eram distribuídos gratuitamente e passavam de mão em mão. Os exemplares que eu examinei estavam em condições de chorar, mas eles os portavam e liam como exemplares da bíblia sagrada num mosteiro suíço. Eu perguntei pelos títulos daqueles livros: - Eram livros da sua literatura clássica, de poemas, de ensino técnico, patrióticos e outros de informações que se recusaram, sorrindo, a traduzir para mim, por razões óbvias. O que eles estudavam naquele país europeu enquanto milhares de irmãos eram assassinados em sua terra? Cursos técnicos, construção civil e de engenharia mecânica, para quando a guerra terminasse e eles seriam chamados para a reconstrução. As moças estudavam mais enfermagem, veterinária e medicina. O país estava sendo arrasado e eles, inabaláveis em sua confiança na vitória, já se preparavam para a reconstrução! Hoje, certamente, meus ex-companheiros lá estarão ainda a refazer seu país dos estragos norte-americanos. Tio Sam tinha tudo a destruir e destruiu tudo... menos a cultura. E foi por aí que perdeu a guerra. E outras perderá, a se darem condições semelhantes. Como aconteceu aos romanos, em seu tempo. Paulatinamente e sem retorno.

(segue)

Um comentário:

Madeleine Alves disse...

O artigo inaugural deste blog é certamente uma "lança" bem conhecida para aqueles que EFETIVAMENTE trabalham no meio cultural (aqueles que apenas o dizem e fingem fazê-lo estão certamente do lado diametralmente oposto, incomodando-se com a "ponta"). A agricultura, a economia, o meio ambiente, os negócios do exterior e tantos outros setores do governo tratam de assuntos inerentes à cultura, uma vez que é da cultura humana trabalhar nesses aspectos. Não podemos separar a vida, com seus múltiplos espectros e aspectos, em gavetas e caixas de papelão, pois tudo está interconectado.

Contudo, a questão é justamente quando se pensa que a cultura são somente as expressões artísticas, que somente quem é músico, ou pintor, ou escritor etc, trabalha com cultura.

Cultura é feita todos os dias. É a nossa passagem sobre a terra — a arte é apenas um meio de se analisá-la, de observá-la com a mente e expressá-la, comunicá-la de algum modo.

E pode ser justamente por se confundir os conceitos de cultura e arte que todos esses outros campos elencados são tidos com maior seriedade do que a produção cultural e suas políticas.

Infelizmente, quem está de fora do meio encara a produção cultural como uma diversão, uma válvula de escape à pressão do escritório e das contas a pagar. Muitas vezes, como bem frisa o artigo de Fausto Fuser, esse comportamento é incentivado por aqueles mesmos que fazem cultura, quando tratam levianamente os projetos a que se dispõem e, muiitas vezes, sentam no ego da fama e do prestígio que a palavra(-mágica) "artista" para quem a pronuncia junto da primeira pessoa do singular.

Pois bem: esse excelente artigo traz à baila o mais óbvio — e que, por assim mesmo ser, mais imperceptível à maioria. Cultura está em nós, em nossas ações. Indissociável dos boletins de ocorrência e escândalos públicos, é o ponto-de-vista de uma sociedade, de um tempo, que se imprime no tempo-espaço terrastre por meio da arte.

É um assunto a ser levado, sim, tão a sério quanto a crise econômica — lógico, sem tantas gravatas e ataduras — e a ser valorizado dia-a-dia, enquanto vivemos, enquanto observamos, enquanto nos expressamos.

Reflito e aguardo por mais deste assunto tão bem escrito aqu no blog do MOTIN. Parabéns!!