08/06/2009

T E A T R O - A ARTE DA VERDADE


As Mentiras do Ator, do Político e “do Mundo” – Proposta de exercício cênico.

por Fausto Fuser

Primeira proposta:
Síntese: Num departamento administrativo público, uma verba prometida oficialmente teve outro destino. Ninguém assume. Os jovens interessados buscam os responsáveis pelo desvio da verba que havia sido obtida com muita insistência para o teatro e o centro de cultura da cidade. Há o infalível empurra-empurra dos administradores:
- “ Absurdo!!! Quem foi que deu essa ordem?!”
“ – Não fui eu! Eu nem sabia!!! Foi aquele ali!!!” Ou... “ - Quem prometeu? Prova!”.

Segunda proposta:
(Síntese dos acontecimentos que antecedem a cena:: Num recanto qualquer de um castelo medieval, alguns soldados rasos, assustadíssimos, acompanham o nobre amigo do príncipe herdeiro até ele. Trata-se de Hamlet, que ouve o relato do seu melhor amigo, apoiado pelos soldados: Já por duas vigílias noturnas nas torres do castelo, noite avançada, surgiu um fantasma! Era o fantasma do seu pai, o rei morto recentemente! Sob o elmo, podia-se ver na face do fantasma, a dor e o desespero... Apavorados, eles não acreditaram em si mesmos, por isso chamaram Horácio, o amigo de Hamlet, levado como testemunha na segunda noite. Horácio, ao surgir o fantasma, tomou coragem e convocou sua palavra, mas o galo cantou e ele se foi, com a dor estampada na face. Mas nada falou...)

Cena: Depois de ouvir os relatos, o príncipe Hamlet, inicialmente incrédulo, pergunta:
- “Verdade?”
- “Tanta verdade como esta é minha mão!”, é a resposta de Horácio.
Hamlet finalmente acredita e decide verificar pessoalmente.

(Da tragédia “Hamlet” - diálogo e cenas apenas aproximados e muito resumidos, favor aceitar unicamente como singela proposta de exercício cênico, com alunos de teatro em busca da verdade cênica).

Terceira proposta:
(Síntese dos acontecimentos que antecedem a cena: Sala de aula prática de teatro. Dois alunos (depois, ainda outro aluno-ator) fazem a parte final da tragédia “Romeu e Julieta”. Romeu encontra Julieta “morta”. Mas a platéia sabe (foi informada pelo autor) que é mentira, que é só um artifício do monge casamenteiro (Frei Lourenço – o terceiro aluno); na verdade, ela está só entorpecida. Mas Romeu não sabe dessa verdade (que é a proposta da morte aparente). Então, perdido pelo sofrimento, Romeu se mata. Ao despertar, Julieta vê seu bem amado morto ao seu lado. Ela não suporta a perda de seu amor e se mata. Entra Frei Lourenço e descobre o fracasso do seu plano. Na cripta, os dois jovens apaixonados estão “realmente” mortos.

Cena: Julieta desperta, vê o seu amado morto ao seu lado. Não suporta a perda (real) do seu amor e se mata. Entra Frei Lourenço que tramou toda a mentira da falsa morte. Dá de cara com a morte verdadeira dos jovens aos seus pés.
MAS... neste exato momento, entra um aluno retardatário, bate a porta, deixa cair cinco livros, esbarra nos colegas – interrompe o exercício dos colegas no palquinho... Olha para os lados. O professor tinha obtido o compromisso solene de TODA a classe de ser rigorosamente PONTUAL, exatamente para evitar coisas como esta!!!
O aluno retardatário, recolhendo os livros espalhados pelo chão, murmura:

- “Desculpe o atraso... é... sabe?... puxa... o... é, o trânsito, sabe? Um horror!... Foi tão difícil chegar aqui, hoje... ”

Propostas aos alunos, sob a mediação do Professor:
Avaliar em suas possíveis variantes, a qualidade, os níveis, das mentiras e das verdades.
Em que os alunos acreditaram? E em quem? Na resposta do administrador político, no relato da personagem Horácio, na justificativa do aluno retardatário? Ou outras, propostas?

Primeira afirmativa: Eu não sabia! Eu não fiz nada disso!
Segunda afirmativa: Eu vi o fantasma do seu pai! Era mesmo o falecido rei!
Terceira afirmativa: O trânsito horroroso me impediu de chegar no horário combinado!

Quarta possibilidade: Considerações sobre as duplicidades das mentiras e verdades na riquíssima cena do final de “Romeu e Julieta”. Incluir o aluno desastrado... e as conseqüências do seu atraso na classe e na qualidade do ensino naquele encontro.

As Verdades, afinal, quantas são? Elas têm níveis? As Mentiras têm tamanhos e níveis?
Observar, nos exercícios, quem mentiu para quem.
Quem disse a verdade dentro de seu sistema de existência – uma determinada peça teatral; um departamento governamental de uma cidade brasileira; uma reivindicação de verba por jovens interessados em desenvolver projetos artísticos; um monge que é contra as dinastias despóticas e que querem impedir um amor verdadeiro; a invenção de uma morte simulada, pelas razões anteriores; um aluno que se atrasa por descuido e só percebe o tamanho do desastre quando vê que interrompeu uma cena de “verdade teatral intensa” dos colegas no palquinho; quem diz que viu o fantasma do rei e assim infinitamente...
Considerações Finais: O espectador, não raro conhece de antemão a peça “Hamlet”, sabe que Hamlet e Ofélia vão morrer. Mesmo assim, ele fica sentado em sua poltrona até a cortina se fechar. Então, ele também aplaude e, discretamente, esconde uma lágrima. Dificilmente ele vai comentar com um amigo, no dia seguinte: -“Imagine, ontem eu fui assistir a uma peça que tinha um fantasma!!!” É mais provável que ele diga algo como: -“Ontem eu fui assistir a “Hamlet”, aquele príncipe que vinga o assassinato do seu pai, que pelas suas dúvidas e seu rancor perde sua futura noiva e morre, ao final, envenenado por um engano. Teria sido um grande rei!”
O aluno que assiste, participando, ao desempenho dos colegas no palquinho da escola de teatro, se tudo correr bem em cena, estará comovido quando Frei Lourenço entra na cripta e se depara com os dois (Romeu e Julieta) mortos.
A entrada do tal colega desastrado, retardatário, só poderá despertar um raciocínio crítico e de frustração (relativo ao “corte” da emoção verdadeira). Mesmo que todos estejam sabendo que os três colegas no palco estejam atuando num texto teatral – aquele sentimento é o da verdade cênica, e as desculpas do colega retardatário são uma mentira conveniente... “do mundo”. Há, pois, no mínimo, dois níveis de verdade e de mentira.
Mas o teatro não é a arte da mentira.
Quando um ator representa “de mentira”, sem verdade, recebe o nada agradável rótulo de canastrão. O público quer acreditar que Frei Lourenço esteja sofrendo de verdade, pela morte do casal de amantes, pelo desastre que sua imprudência causou. Se ele não sofrer de verdade com essas coisas, nada no palco faz sentido... tudo vira mentira. MAS O PÚBLICO VAI AO TEATRO PARA ASSISTIR ÀS VERDADES DAS PERSONAGENS, não às mentiras do maus atores!...
O espectador, claro, sabe que vai assistir só a mentiras: Tônia Carreiro (Desdêmona) nunca morreu nas mãos de Paulo Autran (Othelo); Sérgio Cardoso (Hamlet) nunca morreu de espada envenenada alguma; Sônia Oiticica (Julieta) nunca se matou por Romeu algum na vida... No entanto, mesmo sabendo do desfecho, o espectador se emociona, se o sentimento de verdade dos atores for sólido – isto é, se for tudo uma mentira MUITO BEM VERDADEIRA!
Deu para entender? É tudo um delicioso enigma!!! Uma bela contradição.
O ator não tem como mentir, sem trair o teatro.
Só não sei como o político faz, com sua verdade, na hora de falar com um grupo de jovens aos quais acabou de trair, sobre a verba que desviou por razões inconfessáveis. Bem, não sei responder... não sou político...
Mas como professor, vou ter uma conversinha particular muito sincera com aquele retardatário inescrupuloso... energúmeno... pecaminoso... cara-de-pau!!!

Um comentário:

Madeleine Alves disse...

Um dos pontos que mais gostei neste texto do Profº Fausto Fuser foi o modo como, pelo menos na minha leitura, elucida uma questão há muito antiga, mas há muito complexa: "há vários tipos de verdade". E há vários tipos de verdade porque pontos de vistas são vários e qualquer generalização tola mata toda essa gama de possibilidades apresentada. Que, por sua vez, possibilita outras...

E, em um mundo de generalizações e permissividades convenientes/coniventes, pensar que "cada caso é um caso" é sempre uma luz nestes caminhos de penumbrosas dúvidas. Parabéns!!