14/06/2009

As Intrincadas Relações do Poder e da Arte através dos Tempos

A Censura enquanto Instrumento Privilegiado de Influência do
Poder sobre a Arte
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Por Orleyd Faya
Diretora do Núcleo MOTIN - Movimento de Teatro Independente

Percorrendo os documentos da censura referentes à produção cultural brasileira, Maria Luiza Tucci Carneiro afirma: “(...) o controle da cultura foi sempre uma questão de Estado. A censura, assim como a violência física e simbólica, fizeram parte dos projetos políticos articulados em diferentes momentos da nossa história. Fatos como esse demonstram que o Brasil nunca soube lidar com a democracia.”
As autoridades oficiais de nosso país, partidárias que sempre foram do controle diuturno das idéias, com objetivo de sanear e purificar a sociedade, “(...) definiam, até pouco tempo atrás e segundo sua lógica, os limites entre o lícito e o ilícito, o permitido e o proibido, o bem e o mal.” (Maria Luiza Tucci)
Definidos tais limites, qualquer indivíduo que ousasse desafiá-los era desde logo considerado suspeito de estar tramando contra a ordem imposta, através da tentativa de colocar em circulação suas idéias prontamente rotuladas como perigosas.
E o mais lamentável é que o Estado repressor, ao avançar sobre os direitos do cidadão, obstinado na imposição de barreiras rígidas e impeditivas ao trânsito do ideário considerado nocivo à perpetuação do status quo, sempre elaborou suas regras em nome da Justiça, da Ordem e da Segurança Nacional.
A tentativa – não poucas vezes alcançada – de obstruir a livre manifestação do pensamento, não é uma atividade exclusivamente ligada ao século XX, nem tampouco ao Brasil. A história da censura é uma mácula secular e universal.
No Brasil Colônia, a censura perdurou ao longo de três séculos, superando em muito os rigores do processo censório na América Espanhola. A Inquisição Portuguesa tinha um grande temor de que as idéias heréticas penetrassem no Novo Mundo. Ainda assim, nenhuma medida conseguiu controlar as resistências e, quanto maior se tornava a repressão, mais volumoso se tornava o número de dissidentes.
Desde o século XVI até o advento da reforma pombalina, em 1768, a censura luso-brasileira esteve profundamente associada à Reforma Católica. Este estado de coisas permaneceu inalterado até o final do século XVIII, com o intuito principal de promover a aproximação entre a Igreja e seus fiéis.
Quando, em 1808, a corte do príncipe regente D. João se transferiu de Portugal para o Rio de Janeiro, fugindo das tropas invasoras de Napoleão Bonaparte, a censura era exercida por três instâncias: a Inquisição, o Ordinário e a Mesa do Desembargo do Paço.
A censura no Brasil foi oficialmente suspensa em 02 de Março de 1821, por influência da Revolução do Porto, em Portugal. No entanto, embora proclamada a liberdade de imprensa a partir desta data, o príncipe regente D. Pedro emitiu um aviso à Colônia, em 28 de agosto do mesmo ano, conservando as penas em casos de abusos de liberdade.
Em Janeiro de 1822, alarmado com a multiplicação de tipografias, folhetos e periódicos no Brasil, em sua maioria apócrifos, D. Pedro decidiu proibir o anonimato das obras, a fim de poder determinar a responsabilidade pelo seu conteúdo.
Em Junho do mesmo ano, por ocasião da convocação da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa para o Reino do Brasil, o Regente, preocupado com a perturbação da ordem, emitiu um decreto coibindo os abusos da imprensa com relação ao Estado.
Tal decreto, cujo conteúdo integrou a Constituição de 1824, foi regulado em 20 de setembro de 1830, tendo sido incorporado, três meses depois, ao Código Criminal, onde permaneceu até 1890.
A proclamação da República, em 15 de Novembro de 1889, motivou a emissão, em 23 de Dezembro, do primeiro decreto de censura do país a atingir diretamente a imprensa.
Apesar da publicação de um novo decreto, em 22 de Novembro de 1889, restaurando a liberdade de imprensa no Brasil, tal decreto sequer chegou a produzir efeitos. Tornou-se letra morta.
A polícia política foi criada no país em 1924, durante a vigência da República Velha, e foi responsável, por mais de seis décadas, enquanto braço repressor do Estado, pelo controle das idéias e dos cidadãos considerados perigosos à ordem constituída.
No entanto, é importante esclarecer:

“De outro teor é a censura política, conduzida a partir do Estado em momentos em que há um autoritarismo mais explícito, quando se objetiva conter manifestações da sociedade (...). No Brasil, momentos de exercício censório mais constantes e institucionalizado ocorreram no primeiro Governo Vargas (1930 – 1945), em especial durante a vigência do Estado Novo (1937 – 1945), e no regime militar (1964 – 1985), sobretudo no seu período de maior repressão.” (Maria Luiza Tucci Carneiro)

O governo estadonovista de Getúlio Vargas não foi exceção. Buscou a homogeneidade em todos os níveis, de forma a tornar mais fácil a dominação e o controle da sociedade. Assim se deu a despeito da esperança acalentada nos meios revolucionários, que acreditavam que, após a consolidação da Revolução de 1930 – dita liberal –, a censura seria extinta, sustentados pela crença de que a liberdade de expressão integrava o projeto de governo de Getúlio. Decepcionaram-se.
Instaurada a Ditadura Militar de 1964, através de Atos Institucionais, da Constituição de 1967, e da promulgação do AI–5, as atividades da Polícia Política sofreram uma reorientação. Reinstaurando o Estado de Segurança Nacional, estrutura-se uma verdadeira rede de informações, composta por órgãos e funcionários governamentais, auxiliados por informantes espontâneos. Toda a ação da censura era baseada no programa básico da LSN – Lei de Segurança Nacional, que dividia ideologicamente o mundo em Ocidente Capitalista e Oriente Comunista. Os candidatos a censores faziam cursos na Academia Nacional de Policia.
Embora tenha recrudescido a partir de 1968, a censura não deixou de atuar com veemência no país, logo após a instalação de Ditadura Militar, em 1964.
Assim, a atuação da esquerda na área cultural, mesmo neste período inicial do Governo Militar, não foi conseguida sem lutas e perseguições, excetuado o ano de 1964, em que os militares estavam mais preocupados em reorganizar o país enquanto a classe artística, pega de surpresa pelo Golpe, não teve reação imediata.
No entanto, a partir de 1965, a censura – especialmente a relativa ao teatro – começou a tornar-se cada vez mais violenta.
Em um primeiro momento, a censura era realizada por oficiais do Exército, no período próximo à edição do AI-5 (entre Outubro de 1968 e Maio de 1969). A partir de então, o controle censório passou a ser exercido pelo Ministério da Justiça, através da Polícia Federal, em Brasília e nas superintendências regionais.
Os arquivos da censura desse período encontram-se atualmente reunidos na sede do Arquivo Nacional em Brasília e o acesso a eles tornou evidentes os desmandos e a falta de critérios que comandavam a prática censória daqueles anos.
Tal tese é comprovada pelas palavras de Flávio Rangel, diretor teatral, em declaração feita no ano de 1969: “Éramos forçados a escolher peças metafóricas, pois a pressão da censura era insuportável. Não se podia pensar numa produção custosa, pois corríamos todos os riscos de ter a peça censurada no próprio ensaio geral.”
No entanto, esta não é uma posição isolada de Flávio Rangel. Ao tratar da ação da censura sobre o Teatro Brasileiro, após a instituição do Ato Institucional no. 5, Carlos Guilherme Mota é ainda mais enfático:

“(...) após o AI-5, o teatro brasileiro mais significativo foi banido dos palcos pela censura total, intransigente, castradora. Os autores ficaram impedidos de abordar os grandes temas do Brasil em perspectiva crítica, especialmente os políticos e os que discutissem dependência externa e frustração interna. Poucas foram as brechas por onde penetrou algum ar: Leilah Assumpção, com ‘Fala Baixo Senão Eu Grito’ foi uma delas – produzindo algo estética e politicamente reconfortante. Plínio Marcos, além de ter proibidas suas novas peças, viu cassados os alvarás das antigas (...). Debatendo-se, José Celso Martinez Corrêa inaugura uma nova encenação de cunho escapista (‘Gracias, Señor’), escrita pela sua própria equipe: para não se calar enquanto artista, volta-se à pesquisa puramente formal, sempre na linha da agressão, de vez que o conteúdo se lhe tornara inacessível. Dentro desses moldes, calados nossos encenadores, reinaugura-se a importação de formas novas (Arrabal, via Vitor Garcia, Genet) – note-se que a importação, neste caso, não se dá por carência da produção interna, mas por repressão. Não se trata, pois, de genérica proposta universalizante.
Autores como G. Guarnieri ainda escrevem as únicas formas possíveis de fazer peças passarem pelo crivo da censura – as formas do simbolismo.”

A partir do início do Governo Ernesto Geisel, com a proclamada abertura lenta, gradual e segura, há expectativa de que ocorra o fim da censura – ao menos no tocante à liberdade de imprensa -, mas isto não acontece de imediato. Apenas em junho de 1978 seria proclamado o término da censura prévia à imprensa.
Só a partir da segunda metade do Governo Figueiredo, quando a abertura já se tornou um fato irreversível, é que a censura acusa sinais de um evidente enfraquecimento. Não se pode esquecer, também, de mencionar o fato de ter o General Ernesto Geisel, antes de transmitir o cargo ao seu sucessor, determinado o fim do AI–5, um fator que contribuiu enormemente para a discussão do fim da censura no Brasil.
Em 1983, tomam posse os primeiros Governadores eleitos por voto direto, desde o início do Governo Militar. Em função disso, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, a estrutura administrativa estadual sofre modificações, sendo eliminados alguns símbolos que haviam servido de base de sustentação para os governos autoritários, como a Polícia Política e o DOPS, além de todo o aparato policial repressivo que servira à manutenção do Poder durante anos.
Com o falecimento de Tancredo Neves, – primeiro Presidente civil eleito, embora ainda indiretamente, após os 21 anos de Ditadura Militar no país -, José Sarney, o Vice-Presidente, tomou posse em 1985, dando início a uma nova etapa da história do Brasil.
O então Ministro da Justiça, Fernando Lyra, anuncia finalmente que a censura era um capítulo do passado entre nós.
Para finalizar este tópico, importa ainda dizer que a perseguição implacável promovida aos homens de idéias, no Brasil, durante o Governo Militar, e que foi levada a cabo pelo violento aparato policial organizado pela Ditadura, não terminou sua trajetória sem deixar marcas profundas na sociedade brasileira.
A despeito de tudo, a sociedade brasileira – ao longo de todo o período em que esteve submetida aos rigores da censura – buscou estratégias para burlar as proibições impostas, numa luta contínua e corajosa travada pelos dominados contra seus dominadores.

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