27/04/2010

O PRIMEIRO ATELIÊ, EM POUCAS PALAVRAS


Por Orleyd Faya
Diretora do Núcleo MOTIN

Vivenciar o jogo e manter-me permeável. Ainda que ele tome a forma de um comando externo, brutal, alucinante.
Carregar o outro comigo, mesmo quando dele me afasto. Perdê-lo de mim.
Estar com ele para unir forças, por necessidade, ou mesmo apenas para dar e receber segurança. Estar com ele para atingir um alvo, ou por mera cumplicidade. Instinto de sobrevivência.
Dois estavam juntos num buraco escuro, encolhidos. Tinham a certeza de morrer. Por isso – e só por isso – comungaram até o final.
O som das batidas era como o de bombas.
Era preciso esperar o momento certo para resgatar meus companheiros.
Mesmo escondido, senti-me exposto, vulnerável.
Até quando eu luto? Até onde vale a pena lutar?
A batalha é feroz. Todos os companheiros contra um. O grande antagonista não encontra oponentes porque todos permanecemos lutando, mas estamos sós. Um contra todos. Todos são apenas um.
Buscar estar sozinho, ser o único, contra todo o grupo. Por quê?
Perder o foco é o bastante para abandonar o campo, simplesmente. Apenas perder-se do motivo para lutar.
As leis do Pai. Fora.
Seguro. Público. Social. Ordem. Privado. Fachada. Separado. Quadrado. Frio. Asfalto. Desenraizado. Exposto. Prontidão. Competição.
O Matriarcado é dentro.
Descanso. Redondo. Conforto. Resguardado. Terra. Quente. Junto. Caos. Sagrado. Íntimo. Interior. Movimento. Pertencimento. Colaboração.
Estamos certos?!
Mas não decidimos: perigoso. Profano. Repouso. Familiar. Estranho. Desconforto.
Por onde tem vagado Lilith?
O tecido repousa sobre mim. Enrosca-se em mim. Atadura.
Coceira, muita. Minha pele descola-me das carnes no atrito com ela. Quanto alívio retirar-me disso. E quanta desproteção!
Todos sobrevivemos, por fim. Mas não pensávamos que pudesse ser assim. Digo no percurso, quando sequer podíamos abrir os olhos. Estado de choque. Por quê?
O estado é de alerta. De absoluta atenção. Um bicho. Um estado de risco. O que vem de fora me aflige de repente. Encho-me de susto, de impacto, de atenção corporal.
O que a exaustão me traz?
E o que me faz sentir conforto e desconforto: é estar junto? Excessivamente junto?
Ordens externas. Obrigam-me a fazer tantas coisas que não espero, que não quero. Eu não seria capaz de fazer outra escolha, na via contrária das ordens.
Opto por não sofrer: no que meu sofrer poderia afetar meus companheiros?
A despeito de tudo, não fui capaz de fitá-los. Eu, descanso lá dentro: descanso e me alimento. Mas não ergo meus olhos. Encará-los, não. Ou verei companheiros de braços sempre sempre erguidos, em cruz, em sacrifício.
Busquei forças para permanecer com eles, braços sempre, sempre ardendo, erguidos. Venci a prova: tinha o direito de descansar um pouco, baixar meus braços ardidos. Mas não! Então busquei seus olhos. Onde seus olhares que – pensei – me sustentariam na prova?! Burro, burro, burro. E eu, só. Burro. A comida em breve não haveria mais. Vingança,foi o que desejei.
E eu, o pior de todos? E eu, o incapaz de encontrar? Eu precisava encontrar. Eu parti em busca disso: encontrar. Falhar não era opção. Mas eu falhei. Quis cavar um oco e meter-me nele quando não encontrei.
Escolher meu descanso trouxe junto a culpa. Eu não podia sustentá-la. Não conseguia mesmo comer. E tinha fome. Ter poder é muito, muito ruim.
A voz que ordenava era a melhor voz. Dela eu sabia o que esperar.
O outra, não. A outra é a voz que falseia. Ora doce, ora implacável. Voz capaz de trair. De um salto ela se passaria de um lado a outro. Isso é tudo o que sei.
Por onde as certezas que eu trazia dentro de mim?!

6 comentários:

Orlando disse...

Belíssimo texto!
Ilustra todo o processo de ateliês pelo qual passamos com maestria.
Parabéns, irmã!

Bruno disse...

Não consegui deixar de sentir novamente as emoções que (achei eu) já havia sentido.
Lendo esse texto fui arremessado de volta aos ateliês com meus companheiros em todas as situações pelas quais passamos (ou sofremos).
Algumas das frases da Orleyd ainda martelam em minha cabeça:
"O som das batidas era como o de bombas."
"Burro, burro, burro. E eu só. Burro"
"Dois estavam juntos num buraco escuro, encolhidos,"
Pelo texto, eu a parabenizo.
Pela experiência, eu a agradeço.

Gisele Jorgetti disse...

Trabalhar com gente, gente de carne e osso, que sofre, que ri, que sua, que chora, que tem a coragem de sentir profundamente, visceralmente... Disso só pode resultar um imenso prazer.

Uanderson disse...

Estamos juntos!

Janete disse...

“O longo silêncio quer dizer: Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou. ... ( )Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.” Rubem Alves
É isso! Participar do Motin é motivo de privilégio para mim. É motivo de orgulho! Estar com pessoas éticas, inteligentes e, sobretudo generosas, é realmente um privilégio, em dias tão áridos, às vezes até perverso, quando parece haver no ar uma guerra velada, que não está no noticiário, que não é anunciada, mas que parece existir . Fazer parte do processo de levar à público nossa paixão, já que todos os amotinados parecem sofrer deste “mal” é motivo de prazer, orgulho e carinho que nós artistas sentimos ao querer mudar o que fere, o que aprisiona, o que não respeita, não respira, não aceita.
Janete

Uan disse...

Viver o processo de braços abertos, viver e olhar, enxergar, ver, conscientizar cada pedacinho desse viver tão intenso no corpo e na voz. Entra o ator na sala Lineu Dias para conhecer o trabalho do MOTIN, esse movimento de teatro, e encontro ali durante as Percepções e Experimentos do ano passado, 2009, as pessoas com quem, até então um tanto quanto instintivamente, percebi um desejo parecido de fazer teatro com o meu, como eu queria fazer teatro por acreditar no processo que era desenvolvido, pela sensibilidade e ciência da coisa. E foi com espanto que ao entrar um ano depois na mesma sala Lineu Dias ao receber a notícia de que já ensaíavamos nossa peça durante os ateliês, ainda que sem ter a mínima idéia consciente ou racional do que fosse aquilo a priori, mas foi com esse espanto surpreendente que tive certeza de estar no lugar certo, ao vivenciar um processo tão sério de descobertas focadas e discussões aguçadas. Um lugar onde se faz o teatro pela essência é o que percebo a cada passo desse caminhar no primeiro processo de montagem, amotinar-se para tentar entender esses personagens, suas relações, universos e sensações a partir de vivências, técnica e jogos. Humanamente. O ritual. A brincadeira e a regra. A reação. Ciência. Canalização. Arte. Cada passo mais excitante que o outro, como se de repente fossemos dar de cara com algo incrivelmente novo, mas tão intrínseco, sabido e vivido por nós. A pesquisa ao passo que me surpreende por seu resultado e sua simplicidade também me emociona e afeta pela entrega de cada um dos amotinados. Está sendo um prazer, sempre de braços abertos ao MOTIN.